Lugar Nenhum

Metrô e Mobilidade Urbana.
(texto escrito por Pablo Maurutto em 25/12/2011)

Especialmente com a perspectiva da Copa do Mundo, os graves e quase insuportáveis problemas de Salvador andam constantes na superfície do nosso caldo cognitivo de senso comum. E aí, com o assunto fervilhando à tona, tornamos-nos todos críticos especialistas da nossa condição urbana. Essencialmente experientes pela vivência e ávidos por uma equação óbvia que resolva o nosso caos, em um exercício diário e inevitável dos comos e porquês, chegamos então a uma resposta unânime: mobilidade, transporte de massa, metrô. Assunto da moda, aliás.

É inegável que o metrô, ou qualquer outra solução eficiente de transporte de alta capacidade tenha se tornado estrutura essencial ao funcionamento das grandes cidades. Entretanto, é preciso entender que o tempo de implantação de um sistema bem articulado de um modal sobre trilhos é longo o suficiente para uma cidade imprimir grandes transformações na sua geografia, antes que ele se torne um equipamento orgânico no seu cotidiano. Uma linha de metrô não é bastante para a solução de mobilidade de uma grande cidade como Salvador, e sim uma ampla rede de linhas diversas, articulando todo o território urbano. E, parece óbvio que vamos demorar muito para alcançar uma tipologia de malha. Não estou tirando esta conclusão sobre a cronologia do metrô soteropolitano. Este caso, trata-se de uma excrescência, e não pode servir de referência para traçarmos ou vislumbrarmos o nosso futuro, se ainda pretendemos viver por aqui.

Até mesmo a cidade de São Paulo está muito atrasada em relação à sua oferta de linhas, com uma rede ainda pouco articulada e curta para a sua dimensão territorial e real demanda. Para se ter uma idéia, o metrô de Xangai tem 420 km de extensão contra 74,3 km de São Paulo. E, se o sistema sobre trilhos da capital paulista continuar na mesma média de crescimento, chegará a uma malha semelhante à que Xangai tem hoje, em aproximadamente 172 anos.

Por isso mesmo, não acredito que eu chegue a assistir o metrô de Salvador resolver os nossos problemas urbanos. Acredito sim, que em 30 anos (tempo máximo que os meus olhos conseguem enxergar com certa clareza) ele tenha começado a desempenhar grandes mudanças de paradigmas no nosso comportamento como cidadãos, levando-nos à real interpretação da sua importância. É bastante perceptível que a grande maioria dos motoristas de Salvador esperam que o metrô possa ser uma opção para que os outros deixem o carro em casa e eles possam continuar com seus automóveis, circulando com maior liberdade nas avenidas esvaziadas. Percebam então que, por enquanto, nada deve mudar. Pelo menos até que tenhamos um sistema com real articulação, flexibilidade de trajetos e eficiência para que seja viável que deixemos os carros reservados para as viagens nos fins de semana. Mas, infelizmente, este é um assunto para os meus netos.

Mas, onde o Metrô vai te levar?

Quando entramos em um veículo sobre trilhos dentro da cidade, experimentamos uma breve abstração da relação de lugar. Em trânsito, não estamos em um lugar, estamos entre lugares. Isso acontece especialmente nos subterrâneos. Entretanto, quando saímos e subimos para a superfície há imediatamente uma retomada da compreensão topológica. O espaço e sua urbanidade se pronunciam de forma acentuada no entorno das estações. De imediato a expressão de uma parte de cidade, com sua dinâmica relacionada às economias que ali se desenvolvem: residências, praças, parques, comércios, hospitais, escolas, pulam sobre nossas cabeças recém desenterradas. Saindo da estação, você pode se certificar imediatamente se está mesmo no lugar que desejava.

O lugar onde se chega deve integrar o destino da sua viagem. Em São Paulo, por exemplo, eu trabalhei na Alameda Franca, a aproximadamente 500 metros da Estação Consolação, que tem um ótimo café na esquina e uma livraria e sebo no caminho. Quando chovia, sabia encontrar sempre a mesma senhora vendendo guarda-chuvas chineses que duravam até o primeiro vento forte. Às vezes, na volta pra casa, aumentava o percurso a pé e andava até a Estação Trianon, e o caminho podia reservar algumas surpresas, como um show de Jorge Mautner, em plena quinta-feira, no meio do parque. Aquelas estações eram os meus desejos de lugares-destino nas minhas viagens cotidianas para o trabalho e, de alguma forma, faziam parte da minha vida.

Isso nos leva a pensar que, antes do metrô, a cidade precisa de lugares. Caso contrário, me desculpem caros administradores públicos, mas, não entrarei no metrô soteropolitano. Hoje, meu escritório é em Salvador, na Rua José Peroba, no Costa Azul. Se o metrô chegasse até um grande equipamento polarizador, como ao Salvador Shopping, por exemplo, eu precisaria andar apenas 700 metros até o meu escritório. Quem já tentou fazer esse percurso sabe que são 700 metros percorridos sobre lugar nenhum, sem cafés, sem praças, sem livrarias, sem sombra, sem passeio, sem pontos lógicos de travessia de pedestre, sem “boas tardes” e sem segurança. Hoje, quando vou ao shopping (melhor ainda se não precisasse), vou de carro, percorrendo não 700, mas cerca de 4.500 metros, saturando o tráfego e o ar com monóxido de carbono.

A Desfiguração do Espaço na Cidade.

Esses trechos urbanos desconexos e sem propriedade cultural são resultantes da forma como estamos construindo os nossos espaços na cidade há cerca de 50 anos, desde que optamos por modelos modernistas e pela transferência da centralidade urbana para o Centro Camaragibe, ou Iguatemi.

Os muros da fotografia acima são de condomínios de alto padrão, no bairro de Piatã, construídos à aproximadamente 30 anos, que instituíram novos conceitos de moradia em áreas suburbanizadas da cidade. As guaritas distam exatos 500 metros do primeiro ponto de ônibus. Um percurso cercado por amplas barreiras visuais, sem lugar, sem reconhecimento, inóspito e, acima de tudo, cada vez mais perigoso. Da residência à padaria ou à farmácia não há lugar nenhum. Há apenas distância. Como resultado, os moradores usam seus carros para comprar pão, a apenas 400 metros de suas casas.

O que tem criado continuamente esses não-lugares é uma combinação da falsa noção de conforto e segurança dessa tipologia de edificações com grandes recuos e sem diálogos com a rua, com o abandono da vida desenvolvida nos espaços públicos, do clima local, das interações socioculturais e das trocas. Desses graves equívocos, criamos:

  • a configuração de condomínios e loteamentos cercados que não se integram com a cidade, e ao contrário isolam-se dela, como se fossemos viver presos ali dentro (e, de certa forma, vivemos mesmo);
  • o desenho de espaços públicos de circulação que só servem para conduzir as pessoas até uma guarita;
  • a sensação de que as relações sociais e culturais se bastam nos shoppings centers – essas urbis in vitro – seguros e gelados para que possamos andar mais adequados ao prêt-à-porter.

O poder público faz bem a sua parte, permitindo aos loteamentos e aos projetos de intervenção configurações que transgridem o tipo e intensidade do uso do solo e induzem a cidade à esta completa disfunção do espaço comum.

Diretamente, no esforço governamental pelas soluções de mobilidade, fica exposto o desinteresse pela vitalidade do espaço público. Afinal de contas, já pensaram porque a maioria dos sistemas de metrô são enterrados? Porque, na superfície, o impacto que eles criariam nos lugares seria enorme. Os trilhos são barreiras de divisão territorial. A escolha do metrô de superfície para a Avenida Paralela não considera esta variável da composição urbana. Recorremos então às passarelas, tubos de conexão reservados aos pedestres que se reproduzem em grande número na cidade, gerando mais e mais espaços restritos à transição, não-lugares.

Para a Avenida Paralela, em Salvador, trabalhei na concepção do projeto do Monotrilho, que não foi selecionado como sistema ideal para a cidade, perdendo para o metrô. Mas, havia naquele projeto soluções originadas de um cuidado que precisamos urgentemente colocar em primeiro plano: a valorização do espaço urbano, do lugar público. A criação e a qualificação de lugares são soluções viáveis e mais breves do que o metrô para o nosso desânimo cultural e para este coma pelo qual passa a nossa urbanidade.

Estamos construindo a cidade sobre o ponto de vista de que somos economias circulantes em vias que nos levam até os componentes físicos de produção e depois nos devolvem para recarregar as baterias nos espaços dormitórios. Vamos continuar discutindo a mobilidade, claro, mas não acredito que a solução esteja em acelerar o fluxo desta estrutura maquínica. A solução está em uma releitura social da nossa vida urbana, do reencontro do indivíduo com a cidade e sua cultura através de projetos urbanos ousados e que restituam as ruas aos soteropolitanos. Nesse momento, é mais para estes alvos que precisamos apontar.

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